Continuaremos com os nossos estudos de introdução à Septuaginta, a primeira versão grega do Antigo Testamento que significa “Tradução dos Setenta Homens” ou ainda “Interpretatio secundum (juxta) Septuaginta Seniores” (Tradução dos Setenta Anciãos) e às razões de sua grande importância no conhecimento das Sagradas Escrituras.
Alcance e revisões da Septuaginta
Pelo fato de serem poucos os judeus que ainda possuíam conhecimento da língua hebraica após o domínio helenista (entre os séculos IV e I a.C.) onde o koiné (grego popular) era o idioma falado, a LXX foi muito bem acolhida, principalmente pelos judeus alexandrinos, seus principais difusores pelas nações onde o grego era falado.
Rapidamente, a LXX passou a ser amplamente utilizada e suplantou os manuscritos hebraicos na vida religiosa[1]. E em razão da sua grande difusão no mundo helênico (entre judeus, filósofos gregos e cristãos), as cópias da LXX passaram a se multiplicar, dando origem a variações contextuais.
Orígenes, motivado pela necessidade de restaurar o texto à sua condição original, dá origem à sua revisão, que ficou registrada em sua famosa obra conhecida como Hexapla.
Os Manuscritos da LXX
Os três manuscritos mais conhecidos da Septuaginta são estes:
• O Vaticano (Codex Vaticanus), do séc. IV;
• O Alexandrino (Codex Alexandrinus), do séc. V, atualmente no Museu Britânico de Londres;
• O do Monte Sinai (Codex Sinaiticus), do séc. IV, descoberto por Tischendorf no convento de Santa Catarina, no Monte Sinai, em 1844, sendo que, deste, uma parte se encontra em Leipzig, Alemanha, e outra em São Petersburgo, Rússia.
Todos foram escritos em unciais. O Codex Vaticanus é considerado o mais fiel dos três, geralmente tido como o texto mais antigo, embora o Codex Alexandrinus carregue consigo o texto da Hexapla e tenha sido alterado segundo o Texto Massorético. O Codex Vaticanus é referido pela letra B; o Codex Alexandrinus, pela letra A; o Codex Sinaiticus, pela primeira letra do alfabeto hebraico aleph ( א ) ou pelo S.
Conteúdo
Os Livros presentes na LXX, conforme a ordem original, são estes: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1Samuel (1Reis), 2Samuel (2Reis), 1Reis (3Reis), 2Reis (4Reis), 1 Crônicas (1Paralipômenos), 2Crônicas (2Paralipômenos), 1Esdras, 2Esdras (Esdras e Neemias), Ester, Judite, Tobias, 1Macabeus, 2Macabeus, 3Macabeus, 4Macabeus, Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria, Eclesiástico (Sirac), Salmos de Salomão, Oséias, Amós, Miqueias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias, Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruque, Epístola de Jeremias, Ezequiel, Suzana, Daniel, Bel e o Dragão[2].
Provas de que o NT cita a Septuaginta
Evidentemente existem grupos protestantes que se recusam a reconhecer que Jesus Cristo e seus Apóstolos se utilizaram da versão grega da LXX, já que tal fato contraria a sua versão incompleta da Bíblia. Factualmente, porém, dispõe-se de muitos abalizados estudos que confirmam e atestam tal fato – que é também formalmente reconhecido pela própria Sociedade Bíblica do Brasil, organização protestante dedicada à disseminação da Bíblia, em sua tradução poliglota do Livro Sagrado:
…pois, como se sabe, muitas citações e alusões feitas ao Antigo Testamento no Novo Testamento procedem diretamente da clássica versão grega (isto é, a Septuaginta/LXX).[3]
De fato, temos provas concretas de que o Nosso Senhor usava a versão da LXX. Vejamos onde e como.
• Em sua resposta ao Diabo, o Salvador diz: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’” (Mt 4,4). Cristo referia-se à passagem do Deuteronômio (8,3), mas ocorre que na versão hebraica a expressão usada é “da boca do Senhor (YHWH)”; exclusivamente na LXX é que se encontra a literalidade do que diz Jesus: “…da boca de Deus”. O próprio Cristo, portanto, usava a Septuaginta.
• Nos capítulos 6 e 7 do Livro dos Atos dos Apóstolos, lemos que Estevão foi levado ao Sinédrio pela multidão (At 6,12). Dirigindo-se aos seus acusadores, conta-lhes então como Jacó trouxe seus 75 descendentes para o Egito (cf. At 7,14-15). Ora os textos hebraicos referentes a essa passagem dizem que Jacó trouxera 70 (e não 75) descendentes ao Egito (cf. Gn 46,26-27; Dt 10,22 e Ex 1,5). O Sinédrio conhecia bem a proibição divina de acrescentar ou retirar algo dos livros sagrados (cf. Dt 4,2; 12,32; SI 12,6-7 e Pr 30,6), mas não acusou Estevão de estar pervertendo as Escrituras, ordenando matá-lo por defender a Fé em Jesus como o Messias/Cristo. Sim, Estevão citava Gn 46,26-27 a partir da LXX, que possui cinco nomes a mais que o Texto Massorético hebraico. Os cinco nomes que faltam na versão hebraica foram preservados na LXX, na qual Makir, filho de Manasses, e Makir, filho de Galaad (Gilead no hebraico), são apontados apenas posteriormente como os dois filhos de Kfraim, Taam (Tahan no hebraico) e Sufalaam (Shufhelah no hebraico) e seu filho Edon (Eran, no hebraico).
• Outro exemplo é o nome de um deus pagão citado também por Santo Estevão (em At 7,43), com o nome Renfã, sendo que esta é uma citação de Amós (5,26): ocorre que no texto hebraico o nome do deus é Caivã ou Kevan. Mas Estevão também aqui cita a versão da LXX, que traz justamente Renfã e não o Caivã/Kevan do texto hebraico. Os apóstolos, pois, usavam a Septuaginta.
Como citado e visto, que Cristo e os Apóstolos usavam a Septuaginta é fato solidamente comprovado, o que significa também que o seu uso era igualmente comum entre os judeus da Palestina, contrariando a tese de alguns, de que somente os judeus de Alexandria a aceitavam. E pelo fato de a LXX ter sido amplamente usada pelos Apóstolos e presbíteros da primitiva Igreja, a Tradição Cristã conferiu-lhe importância e lugar especial – como não poderia deixar de ser.
[1]. JAEGER (1991, p.19).
[2]. Escrito incorporado como o capítulo 14 do Livro do Profeta Daniel, foi escrita em aramaico e é datado por volta do final do século II a.C. Os capítulos 13 e 14 de Daniel são deuterocanônicos para as Igreja Católica e para as Ortodoxas e é um daqueles eliminados da Bíblia pelos protestantes, embora ainda fizesse parte da edição original da Bíblia King James (de 1611 ).
[3]. SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Antigo Testamento Poliglota, hebraico, grego, português, inglês. São Paulo: Vida Nova, 2003, introdução, apud LIMA (2007, p.22).
2 respostas
O domínio da cultura helênica tem alguma relação com o termo “na plenitude dos tempos” utilizada no Evangelho pra marcar a época da vinda de NSJC?
Acredita-se que sim, Marco, e há boas razões para isso. Sabemos que gregos e romanos influenciaram a cultura da Igreja nascente, como seria inevitável, pois os Apóstolos obviamente se expressaram como homens do seu tempo. A alta cultura helênica, a filosofia, o idioma amplamente difundido, a construção civil, especialmente das estradas, as metrópoles… tudo isso facilitou a expansão do Evangelho, sendo que todo esse importante avanço cultural e tecnológico para a época deu origem a essa expressão. A maioria dos primeiros cristãos eram judeus e gregos.
Henrique Sebastião
Fraternidade Laical São Próspero