Tudo aparece paradoxal à razão humana na virtude fundamental da Fé: é divina, mas habita um espírito humano; é certíssima, mas não é evidente; é simples, porém, muitas vezes, é de complexa explicação. Não se deve, por isso, estranhar que tantas daquelas almas que realmente tenham desejado viver pela Fé a tenham descrito como sendo desafiadora e até assustadora, por um lado, e por outro maravilhosa, resplandecente, extasiante.
A Fé é a primeira virtude teologal. São João da Cruz a celebrou em suas trovas chamadas “Da Noche” (Noite escura da alma), como também em outros poemas, por exemplo, no cântico da “Alma que se alegra em conhecer a Deus pela Fé”, onde recorre, de dois em dois versos, ao mesmo estribilho: “Aunque es de noche…” [embora seja noite…].
Que a fé seja obscura, isto é, que nunca possamos “enxergar” com toda clareza as coisas nas quais cremos e que moldam profundamente nossas vidas, ou atestar as verdades às quais aderimos por meio dos nossos sentidos físicos, comprova-o a experiência cotidiana de todo crente. Quando contemplo a santíssima Hóstia Consagrada, nada percebo além da aparência de frágil pão; mas a Igreja me faz ouvir as palavras de Cristo: “Isto é o meu Corpo” e, assim, atinjo a noção da “Presença Real”. Por mais que eu estude, analise, considere, medite e aprofunde em meu íntimo tal conceito, não percebo e nem posso perceber como é possível essa Presença, ou como ela se dá. Mas estou certíssimo, entretanto, de que o Corpo de Cristo está ali presente na Hóstia, tão humilde ao nosso alcance quanto esteve quando caminhou entre nós. E tal certeza será invencível, de modos que não se podem explicar.
Ainda assim, é um grande desafio (às vezes, é também um grande padecimento) para a inteligência ter por certo algo que ela própria não alcança! Assim é que muitos dogmas da Igreja apresentam-se insondáveis a nós, mortais! Estamos diante de mistérios que, por necessidade, ofuscam-nos os sentidos e superam a razão. Na verdade, a Fé constitui-se para nós como que a noche de São João da Cruz, uma noite para a alma, quando nada se pode ver claramente, como à plena luz do Sol, como gostaríamos.
Para escapar à vertigem, então, tendemos a nos amparar com sensações e imagens — aferrar-nos à devoção sensível, fantasiar as realidades sobrenaturais, raciocinar sobre elas como se fossem realidades meramente humanas — sem nos atentarmos de que, por isso mesmo, nós as deturpamos e abrimos a porta para insolúveis objeções.
Raciocina-se, assim, sobre as Pessoas divinas como a pessoas humanas; ora o termo “pessoa” implica inteligência e vontade; logo, havendo em Deus três Pessoas, haverá também três inteligências e três vontades? Como escapar à pecha de politeísmo de que nos acusam judeus e muçulmanos?
A Fé, no dizer do Padre Penido, é “obscura” porque transcende o sensível e ultrapassa o racional; é o assentimento firme, consciente e decidido à Palavra de Deus – Deus que, porém, se oculta de nós. “Escada secreta”, chama ainda João da Cruz à Fé: cada artigo seu é como um degrau que nos leva sempre mais alto, nas elevações inconcebíveis do grande Mistério.
Verificamos no Evangelho como Jesus exigia que cressem n’Ele Ressuscitado, sem ver, e bem mais do que isso: que cressem apesar de todas as aparências contrárias. Logo ao iniciar sua vida pública, quando não escolhera ainda os Apóstolos, subiu à barca de Pedro e ordenou: “Duc in altum!” – “Faz-te ao largo (a águas mais profundas) e lançai as vossas redes para pescar!”. Mas que absurdo! Qualquer pessoa “racional” e “sensata” teria ignorado um homem desconhecido que aparece dando uma ordem absurda: aparentemente, obedecer seria tempo perdido, pois aqueles pescadores já haviam, em vão, trabalhado a noite toda. É o que lhe explica pacientemente Pedro. “Porém”, acrescenta, “sobre a tua palavra, lançarei a rede” (Lc 5,4-5).
Podemos imaginar e ponderar porque aqueles trabalhadores brutos e, possivelmente, até um pouco rudes, obedeceram a uma ordem tão estranha e desprovida de lógica. Bem, pouco antes ele tinha ouvido a pregação de Nosso Senhor, que lhe tinha pedido que emprestasse sua barca, para que a usasse como uma espécie de “púlpito”, para daí falar às multidões que o cercavam às margens do Lago de Genesaré, querendo ouvi-lo. Devia estar impressionado, primeiro por ver que tantos buscavam Jesus, e também, talvez especialmente, por suas divinas palavras. Seja como for, sabemos que Pedro não conhecia Nosso Senhor, e todo o episódio deve ter lhe parecido muito estranho. Talvez a autoridade do Cristo fosse irresistível, o que podemos deduzir do episódio em que Ele chama Mateus a segui-lo e este, de imediato, sem pestanejar, abandona tudo para seguir o Mestre.
Seja como for, o fato é que Pedro deu mais valor a uma afirmação divina do que ao testemunho dos seus próprios sentidos, da sua razão, isto é, às deduções mais lógicas da razão natural, que lhe gritavam que não fazia sentido tentar novamente, depois de ter trabalhado a noite inteira sem sucesso, só porque um desconhecido dizia para fazer isso, sem nenhuma justificativa “razoável”. A isso se chama “Fé”.
Tomemos ainda o exemplar ato de Fé do Bom Ladrão. Provavelmente, é humanamente impossível imaginar um contraste mais acentuado entre aquilo que os sentidos evidenciavam e que o raciocínio impunha, isto é, um homem que sempre fora humilde ainda mais e radicalmente humilhado, cuspido, derrotado, desfigurado, reduzido a uma massa sangrenta e agonizante; tudo indicava, naquele momento, que o tal do “seu Reino” não passava de uma bela utopia. Qualquer pessoa racional concluiria isso. Ainda assim, ouvimos as humildes palavras do penitente: “Senhor, lembra-te de mim quando entrares em teu Reino!” (Lc 23,43).
Essa oposição entre a opção totalmente desconcertante da Fé e a atitude natural do homem acha-se bem marcada nas palavras do próprio Senhor: “Eu vim a este mundo para exercer um justo juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39).
O comportamento do cego e o daquele que vê são como as reações do que crê e a do incrédulo, diante da mesma vida. Ainda que um e outro estejam unidos por laços de sangue, no caso de parentes, ou de amor, no caso de esposos, eis que uma guerra inevitável e indesejada se arma. Por mais que procurem se entender, abre-se um abismo entre ambos. São opostos os planos de vida, radicalmente contrastantes os motivos de viver, de ser e de agir. A conduta do crente parecerá estranha ao incrédulo, sem fundamento ou fundada sobre quimeras; ao crente, o incrédulo parecerá um cego por opção, alguém que despreza a verdadeira realidade e a troca por sombras vãs. Daí, o inevitável atrito.
Julgais que vim trazer paz à Terra? Não, Eu vos digo, mas separação; porque, de hoje em diante, haverá numa casa cinco pessoas, divididas três contra duas, e duas contra três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra.”
Jesus o Cristo (Lc 12, 51-53)
Para uns, nada existe além da vida presente; curiosamente, esses estão mesmo entre aqueles que se dizem cristãos e crentes, os que frequentam a Igreja e os Sacramentos, talvez até assiduamente. Na sua vida prática, pautam-se pelo conhecimento sensível (aos cinco sentidos físicos) e os estritos ditames da pura razão. Os do outro grupo sentem, ao contrário, que há um outro mundo mais real do que o sensível, e seguem normas que até contrariam as tendências dos seus instintos físicos, sobrelevando todo entendimento humano. Curiosamente, há muitos destes mesmo entre aqueles que ainda não chegaram ao “redil” ou “aprisco” de Cristo (cf. Jo 10,1.16). Muitos há que, pela luz natural da razão, mesmo não tendo ainda recebido qualquer instrução religiosa, entendem que há algo mais além do mundo visível, que não são eles a razão de si mesmos, mas que é preciso haver um Criador e Ordenador inteligente de todas as coisas.
Todos os homens, pela razão natural, podem alcançar de modo imediato um certo conhecimento da existência de Deus. Isso ocorre porque, vendo os homens as coisas da natureza ocorrerem segundo uma determinada ordem, não havendo ordem sem ordenador, percebem em sua maioria dever existir algum ordenador das coisas que vemos em nosso redor. Quem é, como é ou se é um só este ordenador da natureza, já não é algo que possa pelos homens ser tão imediatamente percebido.
Santo Tomás de Aquino (Summa contra gentiles, III, 38)
Bem-aventurado és tu. Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelaram [quem Eu Sou], mas meu Pai que está nos Céus!
(Mt 16, 17)
São as profundidades insondáveis da Fé. Todavia, importa sobremaneira entender que essas aparentes trevas não resultam da falta de luz, mas sim do excesso de luz. É o que veremos a seguir.