Módulo 7: Ascética e Mística 2 | Manual prático para a vida interior, Lição V


Bem-aventurado o homem, ó Senhor, que de Vós recebe ajuda. Ele dispôs no seu coração os degraus para se elevar deste vale de lágrimas até o lugar onde está o termo de vossos desejos.
[1]


A felicidade não é senão o desfrute do Sumo Bem, que é Deus[2]. E o Sumo Bem está acima de nós. Ninguém, por consequência, pode ser feliz senão elevando-se acima de si mesmo, por óbvio não com o corpo, mas com o coração[3]. Mas, para elevarmo-nos acima de nós mesmos, temos necessidade de uma virtude superior. E, ainda assim, quaisquer que forem as nossas disposições interiores, para nada servem se a Graça divina não nos ajudar. Ora, o auxílio divino está sempre ao alcance daqueles que o pedem do fundo do coração, com humildade e devoção. Quer dizer, é dado só aos que, suspirando, voltam-se para Deus, deste “vale de lágrimas” – que é o mundo em que vivemos, cujo príncipe é o Diabo (cf. Jo 16,11) e cujo deus é Satanás (cf. 2Cor 4,4) – com ardente oração.

A oração é, pois, o princípio e fonte de nossa elevação a Deus. Com efeito, Dionísio, em seu livro acerca da Teologia Mística[4], querendo nos instruir sobre os arrebatamentos da alma, começa primeiro com uma oração. Roguemos, portanto, e digamos ao Senhor nosso Deus: “Conduzi-nos, ó Senhor, em vossa via, e eu caminharei na vossa verdade. Que o meu coração se rejubile no temor de vosso nome (Sl 85,11).

Rezando assim, nosso espírito se ilumina para conhecer os diversos degraus de nossa elevação a Deus. Com efeito, na atual condição de nossa natureza, o Universo é

a escada pela qual ascendemos até o Criador. Ora, entre os seres criados, alguns são o vestígio do Criador, outros, ao invés, são sua imagem[5]. Alguns são materiais; outros, espirituais. Alguns são temporais; outros, eviternos[6]. E, por isso, uns estão fora de nós; outros, dentro de nós. Para chegarmos à consideração do primeiro Princípio essencialmente espiritual, eterno e acima de nós, é necessário passarmos pelo vestígio, que é material, temporal e exterior. Isto significa pormo-nos na via de Deus. É necessário que entremos em nossa mente, que é a imagem eviterna de Deus, e é espiritual e está em nosso interior. E isto significa “caminhar na verdade de Deus”. É necessário, enfim, que nos elevemos até o ser eterno, espiritualíssimo e transcendente, fixando o olhar no primeiro Princípio. Isto significa alegrarmo-nos no conhecimento de Deus e na absoluta reverência à sua Majestade.

Tal é a viagem de três dias[7] na solidão dos quais o primeiro pode ser comparado ao anoitecer, o segundo à manhã, o terceiro ao meio-dia.

Com o texto que reproduzimos até aqui, esperamos ter despertado em nossos estudantes o interesse pela maravilhosa obra de São Boaventura, a qual é recomendadíssima para os católicos interessados em Ascética e Mística e certamente não pode ser resumido em uma breve lição. Mas deste início de leitura, o que podemos apreender é algo realmente necessário à nossa busca prática por Deus, a saber:


1. É Deus o Sumo Bem.

A compreensão dessa verdade fundamental da Teologia em um nível não meramente teórico, mas profundamente interior, transforma a vida do crente em todos os sentidos. Porque a raiz de todos os nossos sofrimentos está no engano de transferir nossas esperanças e assim concentrar nossas melhores energias em coisas acidentais, como as criaturas e as experiências deleitosas que podemos encontrar neste mundo. Tais coisas rapidamente se tornam em vias de fuga da realidade, quando esta é árida ou parece dura demais para a nossa sensibilidade.

Santo Tomás diz que Deus é o Sumo Bem de modo absoluto, totalmente e não apenas em determinado sentido ou segundo certa ordem de coisas. Assim, todo bem é atribuído a Deus, enquanto todas as perfeições desejadas d’Ele emanam, pois Ele mesmo é a Causa, a Fonte, a Origem de todo bem, isto é, de tudo que é verdadeiramente bom para nós. Pode parecer coisa simples, mas a importância dessa verdade é tal que, se realmente entendermos e realmente o soubermos, com plena certeza em nosso íntimo, e se realmente assumirmos essa verdade essencial em nossas vidas, teremos a completa transformação de nossa realidade íntima e, a partir daí, também da realidade que nos cerca. Este é o resultado infalível da vida interior-espiritual bem vivida.

Nada há de mais importante que Deus, porque tudo o mais que nos cerca é temporal, efêmero, mutável e incerto. E todo bem – absolutamente todo e qualquer bem – ao qual possamos nos afeiçoar nesta vida, é dádiva de Deus, só nos é possível mediante a Bondade e a Graça de Deus. Antes de desfrutar de qualquer coisa, só existimos e apenas somos capazes mesmo de desfrutar qualquer coisa por dom de Deus. Assim é que amar a Deus antes e acima de absolutamente qualquer coisa, mesmo nossa própria existência, não só é o primeiro Mandamento e obrigação, mas também é o que somos obrigados fazer por justiça.

A partir do momento em que o cristão alcança este ponto do Caminho sagrado, saberá que o estudo da natureza (ou da Criação), bem como o seu desfrute, só pode fazer sentido como contemplação de Deus, que é seu Criador, Mantenedor e também o seu Destruidor, no tempo oportuno. Tudo aquilo que um dia foi e deixou de existir assim foi e assim deixou de ser por Vontade de Deus, em sua Sabedoria que não podemos alcançar. Por isso diz o verso que abre esta lição: “Bem-aventurado o homem, ó Senhor, que de Vós recebe ajuda. Ele dispôs no seu coração os degraus para se elevar deste vale de lágrimas até o lugar onde está o termo de vossos desejos”. Já temos aqui uma maravilhosa inspiração e fonte para a nossa meditação, que poderá ser repetida diariamente. Plantar e cultivar dentro de si a compreensão de Deus como Sumo Bem e única Fonte de todos os bens para nós.


2. Deus é Quem possibilita crescer interiormente e tudo quanto precisamos. Para que Ele assim nos auxilie, devemos pedir da maneira certa.

Mesmo que tenhamos boa vontade e um desejo sincero, de nada nos servirá se a Graça divina não nos socorrer. E o imprescindível auxílio divino contempla continuamente àqueles que o pedem com amor e com entrega. Com ardente oração, entre suspiros de amor sincero por Deus, o que não é outra coisa senão a consequência do ponto n.1 que acabamos de ver. Pense o estudante na coisa que mais ama: plenamente consciente de que essa mesma coisa só existe por dom de Deus, e que só pode ser conhecida por dom de Deus, e que, antes disso, aquele que conhece e ama só existe, e só existindo pode conhecer e amar a qualquer coisa que seja por dom de Deus, então não há como não amar antes e mais do que tudo a Deus, Fonte inesgotável de graças e de todos os bens.

Se quisermos avançar deste ponto apenas mais um passo, resta lembrar que qualquer bela criatura e/ou todo e qualquer tipo de bem que pudéssemos considerar a partir de nossa experiência enquanto criaturas mortais vivendo em um “vale de lágrimas” que é o mundo ferido pelo Pecado, não passa de pálido reflexo do Criador, de Quem toda criatura e todo bem retira sua existência, encanto e força para ser o que é.


Notas:

[1] Trecho da obra de SÃO BOAVENTURA (vide biografia) ampliado e adaptado para esta formação. O PDF do livro está disponibilizado para download na plataforma digital (Nutror) deste curso.

[2] “Deus é o Sumo Bem, absolutamente, e não só num determinado gênero ou ordem de coisas. Assim, todo bem é atribuído a Deus, enquanto todas as perfeições desejadas d’Ele efluem, como de causa” (STO. TOMÁS DE AQUINO. ST, I, q.6 a.2).

[3] O termo coração (cor, cordis) significa aqui, como desde tempos imemoriais sempre significou, a sede [séde] dos sentimentos e das emoções no ser humano, o “lugar” espiritual onde se tece e se une toda a trama afetiva da pessoa. Assim é que na etimologia da palavra “misericórdia” está o verbo “miserere” (compadecer-se): o adjetivo “miser” (pobre miserável, desgraçado, digno de compaixão) junto com o mesmo cordis mais “ia”, que indica qualidade ou virtude. Podemos, portanto, dizer que misericórdia é a qualidade que se traduz em ter o coração (sentimento, sentido da alma) unido (compadecido) à dor dos desventurados, pobres, miseráveis e/ou daqueles que sofrem (cf. ALONSO, Carmen, ‘La maternidad divina de María, paradigma de la misericordia cristiana’, Iglesia y Familia, 37- novembro/2016, pp. 1-10.).

[4] Dionísio. De mystica Theologia e. 1 §1 (PG 3, 998), apud BOAVENTURA (2012), p.23.

[5] “Vestígio” é basicamente um termo que Boaventura aplica às criaturas, tanto corporais como espirituais, enquanto de longe, mas de maneira distinta, representam a Deus como causa determinada e inconfusa; causa eficiente, formal e final. Os vestígios levam ao conhecimento dos atributos comuns e apropriados de Deus (como o são o poder, a sabedoria, e a bondade). Por isso é possível vislumbrar, por meio do vestígio, o mistério da Santíssima Trindade. “Imagem” é a maneira pela qual uma criatura representa a Deus como “objeto” de modo próximo e distinto. A imagem considera as propriedades que têm a Deus por objeto. Leva ao conhecimento dos
atributos próprios das Pessoas divinas na Trindade (como a paternidade, a filiação etc.). Esta representação só é possível nos seres espirituais. Por meio da imagem, a criatura pode assemelhar-se a Deus pelo conhecimento e pelo amor (cf. Lexicon Bonaventuriano, p.733). Estes conceitos são mais familiares aos leitores de São Boaventura, mas não são fundamentais para a compreensão desta lição. Apud BOAVENTURA (2012), p.24.

[6] Refere-se à qualidade das criaturas espirituais, que não possuem a simultaneidade absoluta de Deus, mas também não estão sujeitas à sucessão do que é composto de matéria. Assim, dizemos de Deus que é eterno; quanto às criaturas, as corpóreas são chamadas temporais; as espirituais, eviternas.

[7] Alusão mística a Êxodo 3,18.

Compartilhe com outros assinantes!

CONTINUE NAVEGANDO PELO CURSO:

AVISO aos comentaristas:
Este não é um espaço de “debates” e nem para disputas religiosas que têm como motivação e resultado a insuflação das vaidades. Ao contrário, conscientes das nossas limitações, buscamos com humildade oferecer respostas católicas àqueles sinceramente interessados em aprender. Para tanto, somos associação leiga assistida por santos sacerdotes e composta por profissionais de comunicação, professores, autores e pesquisadores. Aos interessados em batalhas de egos, advertimos: não percam precioso tempo (que pode ser investido nos estudos, na oração e na prática da caridade) redigindo provocações e desafios infantis, pois não serão publicados.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

PESQUISA POR PALAVRA

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

QUEM SOMOS

CATEGORIA DE POSTS

ADQUIRA LIVROS CATÓLICOS COM O SEU DESCONTO EXCLUSIVO DE ASSINANTE

Cupom de desconto para a Loja Obras Católicas:
ofielcatolico
Cupom de desconto para a Livraria Santa Cruz: OFIELCATOLICO10

DESTAQUES DA SEMANA

GUIA DO FIEL CATÓLICO

A BÍBLIA CONFIRMA A SANTA IGREJA

A BÍBLIA COMO “ÚNICA REGRA” É HERESIA:
 
“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular.”
(2 Pedro 1,20)
 
“Escrevo (a Bíblia) para que saibas como comportar-te na Igreja, que é a Casa do Deus Vivo, a coluna e o fundamento da Verdade.”
(1Timóteo 3,15)
 
“…Vós examinais as Escrituras, julgando ter nelas a vida eterna. Pois são elas que testemunham de Mim, e vós não quereis vir a Mim, para terdes a vida.”
(João 5,39-40)
 

“Porque já é manifesto que vós (a Igreja) sois a Carta de Cristo, ministrada por nós (Apóstolos), e escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração (…); o qual nos fez também capazes de ser ministros de um Novo Testamento, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.”
(2Cor 3,3.6)

A IGREJA SEMPRE OBSERVOU A TRADIÇÃO APOSTÓLICA
 

“Em Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apartai-vos de todo irmão que não anda segundo a Tradição que de nós recebeu.”
(2 Tessalonicenses 3,6)

“Então, irmãos, estai firmes e guardai a Tradição que vos foi ensinada, seja por palavra (Tradição), seja por epístola nossa (Bíblia). ”
(2 Tessalonicenses 2, 15)
 
JESUS CRISTO INSTITUIU O PAPADO
 

“Tu és Pedra, e sobre essa Pedra edifico a minha Igreja (…). E eu te darei as Chaves do Reino dos Céus; e tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos Céus.”
(Mateus 16, 18)

“(Pedro,) apascenta o meu rebanho.”
(João 21,15-17)

“Irmãos, sabeis que há muito tempo Deus me escolheu dentre vós (Apóstolos), para que da minha boca os pagãos ouvissem a Palavra do Evangelho.”
– S. Pedro Apóstolo, primeiro Papa da Igreja de Cristo (Atos dos Apóstolos 15, 7)
 
“Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, confirma os teus irmãos.”
– Jesus Cristo a S. Pedro (Lucas 22, 31-32)
 
A IGREJA SEMPRE VENEROU MARIA COMO MÃE DE DEUS
 

“Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe do Senhor? (Mãe do Senhor = Mãe de Deus, pois Jesus é Deus)”
O Espírito Santo pela boca de Isabel à Virgem Maria (Lucas 1,43)

“De hoje em diante, todas as gerações me proclamarão Bem-aventurada!”
– Santíssima Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor
(Lucas 1, 48)

NÃO HÁ VÁRIAS IGREJAS E SIM UMA SÓ
 

“Há um só Senhor, uma só Fé, um só Batismo”
(Efésios 4,5)

“Ainda que nós ou um anjo baixado do Céu vos anuncie um evangelho diferente do nosso (Apóstolos), que seja anátema.”
(Gálatas 1, 8)

NÃO HÁ SALVAÇÃO SEM A EUCARISTIA
 

“Em Verdade vos digo: se não comerdes da Carne e do Sangue do Filho do homem, não tereis a Vida em vós mesmos.”
(João 6, 56)

“Minha Carne é verdadeiramente comida, e o meu Sangue é verdadeiramente bebida.”
(João 6, 55)
 
“O Cálice que tomamos não é a Comunhão com o Sangue de Cristo? O Pão que partimos não é a Comunhão com o Corpo de Cristo?”
(1ª aos Coríntios 10, 16)
 
A IGREJA SEMPRE CREU NA INTECESSÃO DOS SANTOS, QUE ROGAM POR NÓS NO CÉU
 

“E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos, da mão do anjo, diante de Deus.”
(Apocalipse 8, 4)

“Aqui (no Céu) está a paciência dos santos; aqui estão os que guardam os Mandamentos de Deus e a Fé em Jesus.”
(Apocalipse 14, 12)
plugins premium WordPress