É verdade – e somos obrigados a reconhecê-la – que as verdades reveladas são muitas vezes obscuras à razão e à experiência humanas; mas “a certeza dada pela Luz divina é maior do que a dada pela luz da razão natural”[1], e é por isso que vemos que as pessoas de Fé se apegam ainda mais à Religião quando sofrem e são expostas a grandes provações, quando seria de se esperar que naturalmente ocorresse o contrário.
Se a Fé procura compreender-se[2], como já vimos (é inerente à Fé o desejo de conhecer melhor Aquele em Quem se crê, de compreender melhor o que Ele revelou, especialmente porque o seu primeiro Mandamento é amá-lo, e amá-lo sobre todas as coisas), um conhecimento mais profundo exigirá, por sua vez, uma Fé maior. A Graça da Fé abre “os olhos do coração” (cf. Ef 1, 18) para uma inteligência viva dos conteúdos da Revelação, isto é, da realidade dos desígnios de Deus e dos mistérios da própria Fé. Assim, conforme diz Santo Agostinho, nós cremos para compreender e compreendemos para crer melhor[3].
É realmente muito importante saber – especialmente para aqueles de temperamento mais racional –, que a verdadeira Fé, embora se localize acima da razão e a supere, nunca estará realmente em desacordo com esta. Pois a mesma Inteligência divina que revela seus Mistérios e concede a própria Fé, também acende no espírito humano a luz da razão, e é soberana sobre toda capacidade e ciência humanas. A Verdade divina não poderá jamais contradizer as verdades naturais que o homem é capaz de apreender por meio de suas próprias capacidades naturais[4].
Assim, a busca científica honesta, em todas as áreas do conhecimento humano, se praticada segundo as normas da moral, jamais se colocará em oposição à verdadeira Fé: pois tanto as realidades mundanas quanto as sobrenaturais têm a sua origem em um só e mesmo Criador e Conservador de todas as coisas.
Embora pudéssemos sensatamente conjecturar que a responsabilidade de crer, isto é, de aderir à Fé, juntamente com as responsabilidades e obrigações que serão as suas consequências sejam nossas (Deus quer e espera o nosso ‘sim’), não obstante, tanto na sua concretização inicial como na sua manutenção, a Fé depende inteiramente de Deus, assim como a nossa salvação.
Vale citar e reproduzir neste ponto, para a nossa reflexão e complemento, o trecho inicial de uma obra referencial do teólogo[5], então Cardeal, Ratzinger:
Quem tentar falar hoje sobre o problema da Fé[6] cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica, por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou em seu livro “A Cidade do Homem”[7].
A estória conta como, na Dinamarca, um circo ambulante pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço – já caracterizado para a sua apresentação –, em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O palhaço, então, corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar o incêndio do circo. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Em vão, tenta conjurar os homens, e esclarecer de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está em chamas. Mas o seu esforço apenas aumenta mais a hilaridade da cena, até que, por fim, o fogo alcança de fato a aldeia, tornando tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se vítimas da tragédia…
Cox conta essa estória como análoga à situação do teólogo dos nossos tempos, e vê a figura do teólogo no palhaço, incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupa de palhaço, seja medieval ou de outro tempo passado qualquer, o teólogo não é levado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado já pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e o seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um palhaço: já se adivinha qual o assunto da sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso, pode ser ouvido sossegadamente [mesmo que anuncie uma tragédia iminente, tentando evitá-la], sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma.
Sem dúvida existe algo de angustiante e tal quadro, algo da angustiada realidade em que a Teologia e a formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da Teologia como assunto sério da vida humana.
Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja –, ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, têm-se a impressão de que o palhaço, isto é, o Teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões aos quais acorre, que são os homens sem Fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes dos fatos, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem e retirar a maquiagem, e tudo estaria em ordem.
Será a questão tão simples? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento (no caso uma renovação, uma atualização do modus operandi dos teólogos), uma mera retirada da maquiagem e uma reformulação em termos de linguagem, para que se adeque ao costume do mundo, ou de um “cristianismo arreligioso”[8] para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram, animados, e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos?
Vejo-me compelido a afirmar que a Teologia, desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a Fé no meio de homens mergulhados na vida [materialista] moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de algum antigo sarcófago, que penetrou no mundo atual revestido de trajes e pensamentos da Antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a Fé exercer bastante autocrítica, em breve notará que o problema não se resume apenas às formas, a uma crise que diga respeito apenas ao mero revestimento com que a Teologia se apresenta.
Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança que é inerente à própria Fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua vontade de crer. Por isso, quem tentar honestamente prestar contas da Fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas[9].
Notas:
[1] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II. q. 171, 5, 3um: Ed. Leon. 10, 373.
[2] Santo Anselmo da Cantuária, Proslogion. Prooemium: Opera Omnia, ed. F. S. Schmitt. v. 1, Edimburgo 1946, p. 94.
[3] Sermão 43, 7, 9: CCL 41. 512 (PL 38. 258).
[4] Concílio Vaticano I, Const. dogm. Dei Filius, c. 4: DS 3017.
[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.
[6] Ratzinger não usa inicial maiúscula para se referir à verdadeira Fé dos cristãos, mas para efeito de manter o padrão adotado neste curso, optamos em adaptar assim o texto.
[7] H. COX, The Secular City. Trad. “A cidade do Homem”, Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1968, p. 270.
[8] Pois o mundo rejeita antecipadamente qualquer coisa que lhe seja apresentada como proposta religiosa e/ou vinda de uma instituição religiosa formal, especialmente àquelas que partem da bimilenar Igreja Católica. Se hoje os racionalistas/materialistas parecem amar o Papa Francisco, é justamente porque este – de modo nunca feito por nenhum de seus predecessores –, comunica-se usando a linguagem do mundo, despojando-se (inclusive literalmente) das vestes de Príncipe dos Apóstolos e Vigário de Cristo na Terra. Suprema contradição: para pregar a Cristo seria necessário disfarçar ou esconder todo sinal visível que faça lembrar o mesmo Cristo? Para que a Igreja subsista, será preciso ocultá-la, despojá-la de tudo o que sempre a caracterizou enquanto tal?
[9] Por razões que não são difíceis de entender, Ratzinger foi e continua sendo duramente criticado pelos teólogos tradicionalistas/conservadores por ter escrito tais palavras. A partir deste ponto, ele avançará cada vez mais audaciosamente nessa mesma perigosa direção, mostrando que sempre esteve bem longe de ser o clérigo tradicionalista que muitos (os que não se encorajam a estudar sua densa obra) imaginam. Seja como for, a análise dos seus textos terá sempre valia para aqueles católicos bem maduros na Fé, se considerarem as profundíssimas reflexões a que nos remetem e que, ao fim, servirão para nos fortalecer muito mais solidamente na Fé.