Continuação da citação de RATZINGER*
Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada; um madeiro desatado parece sustê-lo, e têm-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele; esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.
O quadro apresenta, além disso, uma dimensão maior que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele que se considera descrente, que deu as costas a Deus porque acha que esperar não é para ele, mas quer possuir o que é atingível… como se este pudesse estar em outra parte além de Deus.
É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios, até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado a imagem, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua Fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua Fé.
Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista, que já há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente “certo”… jamais o abandonará a secreta insegurança: estará o positivismo realmente com a última palavra?
O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como sendo o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe?, – a Fé a represente, no fim, a realidade. Portanto, como o crente se vê ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ter nela sua perene provação, assim a Fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo.
Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem quiser fugir das incertezas da Fé, terá de experimentar as incertezas da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá dizer sem sombra de dúvida que a Fé não se cobre com a Verdade. Somente na recusa da Fé revela-se a irrecusabilidade da Fé.
Talvez convenha, neste ponto, citar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana:
Um dos “iluministas”, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi à sua procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da Fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: ‘E, contudo, talvez seja verdade’. O sábio, em vão, tentou fincar pé, defendendo sua dignidade própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspecto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se para ele e lhe disse, sereno: ‘Meu filho, os grandes da Torá, com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu Reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade’. O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível ‘talvez’, a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer resistência.[1]
Apesar da imagem estranha, temos aqui uma descrição muito precisa da situação do homem frente ao “problema Deus”. Ninguém é capaz de servir aos outros um “cardápio”, um manual sobre Deus e o seu Reino, e nem o próprio crente pode ter algo assim para si mesmo. Mas, por mais que se possa querer justificar a descrença com isso, permanece de pé o horror daquele “talvez seja verdade”. O “talvez” representa o inevitável ataque do qual é impossível escapar, o qual é preciso experimentar; com a recusa, aparece a irrecusabilidade da Fé. Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da Fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar totalmente da Fé. Para um, a Fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida.
*Fim da citação de RATZINGER
* RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2012, p. 31-36.
Nota:
[1] M. BUBER, Werke III, Munique-Heidelberg, 1963, 348.