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Expressaram os grandes teólogos uma mesma verdade – usando de termos abstratos – sobre o recíproco e colaborativo influxo da inteligência e da vontade na origem (gênese) do ato de fé dos seres humanos. Veremos de que modos se dão as atuações de ambas.
A inteligência, como preparação, deve ser capaz de perceber que aceitar o Testemunho divino é razoável, e logo ter conhecimento do fato da Revelação. Em outras palavras, cumpre-lhe perceber a força, a evidência intrínseca dos argumentos apologéticos objetivamente válidos.
Já para que isso aconteça, muito contribui a boa disposição da vontade. A inteligência deve, em seguida, autenticar o ato de fé: aderir firmemente à Revelação e aos seus conteúdos, por causa da Autoridade de Deus que o revelou. Porém, como nesse passo não “vê” nem é capaz de compreender racionalmente – pois os mistérios divinos são para nós obscuros –, permaneceria hesitante e duvidosa, se a vontade não a movesse a acolher o Testemunho divino.
E a vontade só pode mover porque ama. Queremos crer (vontade), porque aceitar a Verdade misteriosa e divina nos aparece como um bem desejável, o qual amamos, por ser o meio de testemunhar a Deus com confiança e obediência, já por nos saciar secretas ânsias, já por nos ajudar a bem viver, já também porque tememos as consequências de resistir, e assim queremos evitar pecar contra a Luz para mergulhar nas trevas, etc.
* * *
Assim é que temos o recíproco influxo da inteligência e da vontade.
1) A inteligência, por motivos vários, apresenta à nossa vontade a Fé como um bem;
2) aliciada por este bem, a vontade livre quer acreditar;
3) em retorno a inteligência, obediente, aceita a Revelação beatificante; e então se produz o Ato de Fé.
Este mesmo Ato vem suprir a incompreensão racional dos mistérios a inabalável confiança na Verdade suprema.
A história de Paul Claudel (foto) ilustra maravilhosamente bem o esforço conjunto das duas faculdades: aos 18 anos o poeta, viciado nos costumes e com o espírito subjugado pelos argumentos cientificistas, converteu-se a Cristo numa tarde de Natal, quando visitava, por acaso, a Notre Dame de Paris. Numa intuição fulminante, “viu” com os olhos da Fé a Verdade fundamental da Religião cristã: “Deus existe! Ele está aqui! é um Ser tão pessoal quanto eu! Ele me ama! Ele me chama!”…[1]
E acreditou; acreditou com adesão tão firme que, assegura ele, as vicissitudes de uma longa vida agitada jamais conseguiram abalar nele a Fé. Contudo, a própria rapidez da conversão impediu que a inteligência de Claudel se adaptasse desde logo às novas convicções. Subsistia-lhe intacta, no espírito, uma grande quantidade de objeções à Revelação, e também os antigos apelos das doutrinas materialistas anticristãs. Daí que a inteligência do jovem poeta se encontrava como que esquartejada, dividida entre as verdades da Fé, que ora admitia, e as teorias cientificistas às quais sua inteligência religiosa era, humanamente, incapaz de responder. Um dolorosíssimo conflito, que perdurou por diversos anos, até que Claudel conseguisse restabelecer sua harmonia interior.
O que lhe sustentou a Fé durante essas muitas, longas e duras lutas? O que foi que lhe fixou a inteligência na adesão à Verdade divina, apesar de todas as objeções? Evocando aqueles anos tormentosos, Claudel escreveu em uma de suas odes:
Ó meu Deus, lembro-me dessas trevas em que estávamos face a Face; essas sombrias tardes de inverno em Notre Dame. Eu, sozinho, bem no fundo da igreja, alumiando a face do grande Cristo de bronze com uma vela de cinco vinténs.
Todos os homens estavam contra nós – e a ciência, e a razão –, e eu não respondia nada.
Só a Fé estava em mim, e eu vos olhava em silêncio; como um homem que prefere o seu amigo[2].
Prestemos atenção à estreita correspondência entre o quadro exterior, a situação para quem a via de fora, e o interior desse homem, o estado da alma do poeta. De fora a escuridão, por vezes opressiva, dessa majestosa, belíssima e grande catedral gótica; mas, contra toda treva, como lutava o jovem Claudel?
Segurando uma vela, pequenina e barata, cuja luz bruxuleante lançava alguns tênues reflexos sobre a grande imagem do Cristo em bronze. Por dentro, na alma do neófito, igualmente reinava escuridão – as trevas derramadas por aqueles homens que argumentavam em nome de uma ciência mal entendida – e Claudel, ali sozinho, não sabia como contestar; não adquirira ainda aquele vasto cabedal de saber teológico que admiraríamos depois em seus escritos. Só dispunha da Fé, a tremeluzir no meio da vasta escuridão assim como sua velinha na penumbra da imensa catedral. Mas o que lhe fortalecia a chama, e apesar de tudo impedia que se extinguisse? – O amor por Cristo, e ele só.
Se caluniam um bom amigo nosso, alguém que conhecemos bem e em quem confiamos, contando sobre ele alguma mentira que o desonra – e nós, por desconhecermos o caso, não sabemos como defendê-lo –, ainda assim sentimos e sabemos que deve haver algum equívoco, que a história apresentada não é e nem pode ser verdadeira; preferimos manter fé em nosso amigo, mesmo sem saber o que passou, até que ele possa explicar tudo. Não é assim que fazemos? Pois assim é que Claudel se colocava diante dos sábios deste mundo, que atacavam a sua Fé recém adquirida, sem saber o que lhes responder. Olhava para o crucifixo de bronze, mantinha a confiança em Cristo – como faz “um homem que prefere seu amigo”.
Sim, pode ser difícil às vezes, e será, confiar em um Deus que não se mostra, a não ser sutilmente. Ele não deixa de dar sinais, você sabe, e Ele faz milagres nas vidas de todos nós. Ele realmente atende aos seus pedidos e anseios com muita frequência, enviando seus auxílios quase que diariamente. Mas… um grande mal do homem é esquecer. E nos esquecemos muito facilmente de todos os benefícios que Deus nos têm feito, e nossa adesão a Ele é abalada a cada tribulação, a cada dificuldade que surge. Quantas vezes fomos débeis para reatar essa relação, vencer uma crise de Fé, reaproximar-nos d’Ele e voltar a confiar inteiramente, com a força e a simplicidade de uma criança? De fato, se formos honestos, veremos que não somos capazes, por nossas próprias forças, de perseverar nesse Caminho. Que fazer, então?
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[1] Vide em “O Fiel Católico” a descrição completa da conversão de Paul Claudel, em:
www.ofielcatolico.com.br/2008/12/o-primeiro-natal-de-paul-claudel.htm
[2] CLAUDEL, Paul. Ma conversion (coletânea de Th. Mainage: Les Témoins du renouveau catholique,
Paris: Beauchesne, 1919, pp.63-71; Cinq grandes odes, p. 164, apud PENIDO (1956), p. 24s.