1| Natureza da Ascese e das práticas católicas de crescimento interior (espiritual)
Para entender o que é a Ascese, qual a sua importância na vida de todo cristão e, logo mais, as suas relações com a Teologia Dogmática e com a Moral, juntamente com a sua fundamental importância para a vida interior, será de proveito que iniciemos pela aquisição dos conhecimentos mais rasos e técnicos a respeito.
Lembrou o Revmo. Padre Tanquerey – autor, entre outras obras clássicas, do célebre “Compêndio de Teologia Ascética e Mística” – , que a ascese era chamada de “Ciência dos Santos”, e com razão, já que 1) a sua estruturação sistemática tem origem nos Santos místicos que a ensinaram, os quais só puderam fazê-lo porque, antes, a viveram na prática; 2) e também porque é uma ciência destinada a formar cristãos santos, pelo ensino claro do que é a santidade e sobre quais os meios de a alcançar.
Prossegue o Pe. Tanquerey em sua lista dos nomes dados à ascese no correr da história da Igreja, com a citação de que foi também chamada “Ciência Espiritual”, igualmente com razão, porque busca formar cristãos espiritualizados: homens de vida interior, animados do Espírito de Deus.
Por ser também uma ciência prática – assim se tornou e se desenvolveu, em razão da necessidade dos padres e também dos fiéis comuns que queriam aprendê-la –, já foi apelidada “Arte da Perfeição”, mais uma vez com razão, pois tem como finalidade conduzir as almas à perfeição cristã[1]. Por fim, a ascese foi denominada “a Arte das artes”, por não haver arte mais excelente do que esta: a de aperfeiçoar uma alma na aquisição do aprendizado mais nobre e, afinal, mais importante a que possamos nos dedicar: o da vida sobrenatural, que é perene, ilimitada, plena, realizadora e, até mesmo, provedora de todas as outras necessidades, como ensinou o Mestre dos mestres:
– Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas [referindo-se às necessidades materiais-temporais] vos serão acrescentadas.
(Mt 6,33)
A palavra Ascética vem do grego ἄσκησις (áskēsis: exercício, esforço) e designa todo o exercício laborioso que se refere à educação física e/ou moral do homem. Ora a perfeição cristã supõe os esforços e o “treinamento” da alma, que São Paulo Apóstolo compara aos exercícios de treinamento das habilidades físicas a que se submetiam os atletas e os lutadores antigos em busca de vitórias[2].
É, pois, de se compreender a designação pelo nome de Ascese aos esforços da alma cristã em luta para alcançar a perfeição e obter vitórias contra formidáveis inimigos – visíveis e principalmente invisíveis –, como as tentações, as más inclinações, a concupiscência da carne, os chamados do mundo, o anseio natural que temos por fazer parte de um grupo, o que é um problema em um mundo submerso
no materialismo, no relativismo e na sensualidade desordenada, etc. Clemente de Alexandria[3] e Orígenes[4], assim como um grande número de Santos Padres, chamaram assim à arte da Ascese.
Não é, pois, de causar estranheza que se tenha dado o nome de Ascética à ciência que se ocupa dos esforços necessários para adquirir a perfeição cristã. Durante séculos, porém, o termo mais usado para designar tal ciência foi Mística, da mesma raiz grega[5] de mistério, misterioso, com significado de coisa oculta, secreta, e, no âmbito religioso, das coisas relacionadas aos segredos da perfeição espiritual.
A Mística pertence ao campo do que não pode ser dito, tanto em razão da incapacidade que a experiência humana ordinária é capaz de oferecer, quanto, ao fim, pela incapacidade da linguagem igualmente humana diante daquilo que a transcende.
A via mística envolve uma compreensão da vida e do mundo como um todo, numa apreensão mais elevada da realidade, à parte (santa, santificada) dela mesma[6], algo que só se torna possível quando as barreiras criadas pelos limites dos condicionamentos ordinários são derrubados. Alcançá-lo pressupõe a busca insistente e um diligentíssimo treinamento, a tal nível que fariam tremer o mais poderoso dos gladiadores, mas também uma sutileza e uma leveza de modos que a este confundiriam. Pois os que anseiam pelo Senhor devem saber que o seu caminho é tão estreito que poucos se atrevem a enveredar por ele, mas, ao mesmo tempo, seu fardo é leve e o seu jugo é suave. Mistério da Fé. E justamente o que há de misterioso na existência da vida e no Universo que nos rodeia é onde mais fortemente o tecido da realidade se fundamenta, porque lhe confere sentido. É destas coisas que se trata esta parte de nossa formação.
Concluindo o tema da nomenclatura teológica aplicada ao objeto de nossos estudos, importa citar, por fim, que houve um tempo em que ambas as palavras foram empregadas com o mesmo sentido, “mas prevaleceu o uso de reservar o nome Ascética à parte da ciência espiritual que trata dos primeiros graus da perfeição até ao limiar da contemplação, e o nome de Mística à que se ocupa da contemplação e da via unitiva”[7].
Resumidamente, o que importa de início é saber que nossos estudos aqui se ocuparão da ciência da perfeição cristã: eis o seu destacado lugar no plano geral da Teologia.
2| O seu lugar na Teologia
Santo Tomás fez compreender com excelência a unidade orgânica da Teologia, ao dividir sua Suma em três partes: 1) na primeira, tratou de Deus como Primeiro Princípio, na Unidade da sua Natureza, na Trindade das suas Pessoas, e nas obras que criou, conserva e governa pela sua Providência. 2) Na segunda, ocupou-se de como Deus Último Fim, para Quem devem tender as almas, orientando para Ele suas ações sob a direção da Lei e o impulso da Graça, praticando as virtudes teologais e morais e os deveres particulares de cada estado. 3) Na terceira, contemplou o Verbo Encarnado fazendo-se Via para Deus e instituindo os Sacramentos que comunicam a Graça, a fim de nos conduzir à vida eterna.
Neste plano, a Teologia Ascética e Mística está em conexão com a segunda parte da Suma, mas sem deixar de se apoiar nas outras duas.
Sempre em harmonia com a sua unidade orgânica, no correr do seu desenvolvimento, a Teologia se dividiu em três partes: a Dogmática, a Moral e a Ascética.
a) A Dogmática ensina o que é preciso crer e saber sobre Deus e sobre a comunicação que Ele se digna conceder de Si mesmo às suas criaturas racionais, sobretudo ao homem; como se deu a perda da vida plena pela opção ao Pecado; a posterior restauração desta vida que Deus quer para nós, pelo Verbo Encarnado; sua ação na alma regenerada; sua difusão pelos Sacramentos; sua consumação na Glória eterna.
b) A Moral ensina como se deve corresponder ao Amor de Deus, cultivando a vida nova que Ele nos legou, pela santificação constante; como se deve evitar o pecado e praticar os deveres de cada estado, que são de preceito; as santas virtudes para alcançar a vida eterna no Céu.
c) A Ascética existe para os que desejam aperfeiçoar essa vida nova que Deus nos concede, avançar além do que é Lei e estrito Mandamento, progredir na prática das virtudes de maneira constante e metódica, traçando-nos regras de perfeição.
A Ascética não deixa de ser, pois, uma parte da Moral cristã, justamente a sua parte mais elevada, mais nobre, aquela que tende a fazer o cristão perfeito. Mesmo tendo se tornado um ramo da Teologia, conserva com o Dogma e a Moral relações íntimas, já que:
Fundamenta-se na Dogmática. Para expor a natureza da vida cristã, é ao Dogma que recorre.
Apoia-se também na Moral, e a completa. Se a Moral explica os preceitos que devemos observar para adquirir e conservar a vida em Deus, a Ascética fornece os meios de a aperfeiçoar, supondo evidentemente a prática dos Mandamentos; seria perigosa ilusão descurar os preceitos sob a pretensão de se praticar as mais altas virtudes, ou querer cultivar as mais elevadas práticas antes de saber resistir às tentações e evitar o pecado.
Ao mesmo tempo, a Ascética é igualmente um ramo distinto da Teologia Dogmática e Moral. Com efeito, tem o seu objeto próprio: reúne no ensino de Nosso Senhor, da Igreja e dos Santos, tudo o que se refere à perfeição, natureza, obrigação e meios da vida cristã plena, e coordena todos estes elementos, de sorte que deles se forme uma verdadeira ciência.
1) Distingue-se assim da Dogmática, que não nos propõe diretamente outra coisa além das verdades que se devem crer. Ainda que se apoie nessas verdades, orienta-as para a prática na vida diária, utilizando-as para nos fazer compreender, amar e realizar a perfeição cristã.
2 ) Distingue-se da Moral porque, ainda que relembra os Mandamentos de Deus e os da Igreja – fundamento de toda a vida espiritual –, propõe-nos os conselhos para a prática de cada virtude, em um grau mais elevado do que aquele que é estritamente obrigatório. Assim é que se configura na ciência da perfeição cristã.
Começamos já a compreender, a partir do que foi enunciado até aqui, o duplo caráter de ciência ascética e mística, que é a um só tempo especulativa (teórica), que analisamos agora, e prática, como veremos logo a seguir. Contém sem dúvida uma doutrina especulativa, visto que remonta ao Dogma para explicar a natureza da vida cristã; mas é sobretudo prática, porque busca os meios que se devem tomar para cultivar essa vida na prática.
Estamos diante do estudo de uma verdadeira arte, que consiste em aplicar com discernimento e dedicação os princípios gerais a cada alma em particular; a arte mais excelente de todas, ao mesmo tempo dura e dificílima, por um lado, e suavíssima, natural e fluida, por outro. Seus princípios e regras, se bem entendidos e sobretudo praticados na vida diária, tenderão a formar bons diretores espirituais. O mundo precisa destes. Desesperadamente.
A partir deste ponto, neste volume, avançaremos ao estudo da aplicação prática de tudo o que foi até agora esboçado.
Notas:
[1] Ciência da perfeição cristã: eis aí a mais simples e perfeita definição de Ascese mística.
[2] Em passagens como 1Tm 4,8; 1Cor 9,24-27; 2Tm 2,5; 4,7.
[3] No Pedagogo, L. I, c. 8., P. G., VIII, 3 1 8 , CLEMENTE chama de asceta a Jacó, depois da misteriosíssima luta contra o Anjo (ou simbolicamente contra Deus mesmo) em uma experiência mística de profundidade insondável.
[4] ORÍGENES (In lerem., homil. 19, n. 7, P. G., XIII, 5 18) designa pelo nome de ascetas uma classe de fervorosos cristãos que praticavam a mortificação e outros exercícios de perfeição.
[5] μυστικός – pronuncia-se “Mistikós”.
[6] Esta é a própria sublime arte da Ascese e da Mística, que veremos em todo o desenvolvimento destes estudos.
[7] TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia ascética e mística. 6ª ed. Apostolado da Imprensa: Porto, 1961,
p. 3.