“Cogito, ergo sum” (‘Penso, logo existo’), percebeu, num vislumbre genial, o Pai da Filosofia Moderna[1].Ele tinha decidido descartar absolutamente todas as convicções ou certezas adquiridas pela humanidade até então, e esta era a primeira verdade que ele pudera confirmar por si mesmo, a primeira certeza absoluta e insofismável que ele descobriu que possuía, a qual podia afirmar sem medo. Mas, depois deum tempo, sob o risco de cair num solipsismo inescapável, precisou reconhecer que ele próprio não era a causa de si mesmo, que tinha que haver algo antes dele que lhe deu origem e – mais além, constituindo esta a sua terceira prova da existência de Deus –, era necessário existir também Aquele que garante a contingência do espírito humano. Em outras palavras, assim como não podemos nos gerar a nós mesmos, não podemos conservar a nossa própria existência por meio de nossas próprias forças.
Dizendo mais resumidamente, não podemos garantir nem a nossa existência e nem a nossa continuidade, mas apesar disso existimos e nos conservamos existindo, pelo tempo que nos é dado. Logo, é preciso existir algo exterior a nós mesmos que garanta essa nossa existência. Aí está uma bela prova da existência de Deus, dada por um personagem que os católicos tradicionais costumam desprezar[2]. De modo semelhante e por consequência, é preciso existir algo que nos guie até um conhecimento que é, por sua própria natureza, superior às capacidades humanas. Seres finitos e imperfeitos que somos, estudamos matérias relacionadas às realidades infinitas e perfeitas (divinas). A Fé cristã, portanto, não é o fruto de uma conquista humana, mas está fundada sobre um puro Dom, uma comunicação do Alto; é inútil esforçar-se para elevar tanto o nosso pensamento até que alcance Deus: para que sejamos capazes de avançar, é Ele mesmo Quem deve nos descer ao encontro, tornar-se presente à nossa inteligência a fim de revelar os seus segredos, aqueles que Ele, em sua sabedoria infinita, julgar convenientes. Assim Ele nos fala por vias e de modos que nos são acessíveis[3]. Deus nos fala porque, em seu incompreensível Amor, quer nos fazer partilhar algo de sua Vida, cá na Terra, e nos chamar mais tarde à posse inebriante dessa mesma Vida. Ora o viver, para o espírito, é conhecer e amar: a comunicação de conhecimentos sobre Deus, tal é a Fé, assim como a caridade é comunicação do Amor divino. Por ser sobrenatural, esse nosso destino escapará inevitavelmente ao alcance da razão. Era, pois, inevitável esse caos de opiniões humanas – quando essas opiniões são desvinculadas da condução da Igreja, dada por Deus mesmo –, sobre o sentido da vida: só Deus nos pode dar a plena solução do maior de todos os problemas; só Ele nos pode fazer conhecer seus livres desígnios. A Revelação é essa Mensagem de Deus ao homem.
Nas Sagradas Escrituras, a cada passagem das Epístolas e dos Atos, repetem os Apóstolos que a nossa Religião, por eles pregada, não é uma invenção própria, nem mesmo eles a receberam ou aprenderam de homem algum, mas pela Revelação de Deus-Jesus Cristo.
Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado; pelo contrário, eu o
recebi de Jesus Cristo por revelação.
(Gl 1,12)
A judeus e gentios, os enviados do Senhor se apresentam como simples arautos
de Cristo, obedientes à ordem de levar a mensagem de salvação a todos os povos:
Eu recebi do Senhor aquilo que também vos transmiti.
(1Cor 11,23)
Eu vos lembro, irmãos, o Evangelho que vos preguei, e que tendes acolhido, no qual estais firmes. Por ele sereis salvos, se o conservardes como vo-lo preguei. De outra forma, em vão teríeis abraçado a Fé. Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido.
(1Cor 15, 1-3)
Esse Cristo a quem apelam, de quem são arautos, dissera-lhes: “Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo aquilo que ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15). Cristo é o Verbo, Palavra do Pai. Encarnando-se, vem manifestar e dar a conhecer ou revelar o Pai. Ser a “Luz dos homens” (Jo 1,4) é a sua função própria; para isso nasceu, para isso veio ao mundo. Todavia, não para espargir luz criada ou saber humano, mas veio em Nome do Pai para irradiar Luz incriada, manifestar o Pai:
Quem crê em Mim, crê não em Mim, mas n’Aquele que me enviou; e aquele que me vê vê Aquele que me enviou. (…) o que digo, digo-o segundo me falou o Pai.
(Jo 12,44-45.50)
Ele é de tal forma o Redentor que não apenas ouvindo-lhe as palavras, mas simplesmente conhecendo-o, conhecemos a seu Pai. O fiel comum, que por vezes se sente desnorteado com os mais altos conceitos teológicos e que indaga o que significa exatamente o termo “Revelação”, abra o Evangelho e veja como, dia após dia, o Verbo encarnado instrui aos seus discípulos; como aos poucos lhes infunde nas almas os conhecimentos acerca do Pai – vindos do próprio Pai –, e terá uma noção concreta do que seja a Revelação: a manifestação, por Deus, das verdades sobre Deus.
Neste ponto cabe uma observação muito importante: a verdadeira Revelação divina é essencialmente diferente ou mesmo contrária àquelas doutrinas das muitas escolas herméticas e ocultistas ou alternativas, que apresentam versões heterodoxas do Cristianismo, sempre baseadas em interpretações e elucubrações meramente humanas sobre os Livros sagrados e as tradições antigas, ou em miscelâneas de distintas doutrinas, muitas vezes com elementos da espiritualidade oriental. E em quais pontos, exatamente, é assim tão diferente? Além do que terminamos de ver, a procedência do Alto, a diferença está no fato de que a verdadeira Revelação nos é dada apenas em parte, avança até certo ponto, faz-nos descobrir as bases do que há por trás do Véu do Mistério Divino, sem o elucidar por completo. “Hoje vemos como que por um espelho, confusamente”, diz o Apóstolo; “mas então (somente no Céu, ou quando retornar o Cristo, glorioso) veremos face a Face”. E reitera: “Hoje conheço [somente] em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido” (1Cor 13,12).
O Céu não nos revelou tudo, ainda. Nesta etapa da grande jornada humana, não recebemos de Deus o dom de conhecer tudo o que há para ser conhecido, e de fato estamos muitíssimo longe disso. Não nos cabe saber detalhes sobre como será a nossa vida no Céu, ou quanto às realidades angélicas, às glórias celestes de Nossa Senhora e dos Santos, como são as suas moradas, de que modo se constituem os corpos gloriosos, nem outras minúcias semelhantes a estas. O que a Revelação nos dá é a certeza do caminho a ser seguido, e nos diz o que devemos e o que não devemos fazer enquanto caminhamos neste mundo de dores. E o nosso caminhar deve ser sempre mais e mais célere e firme, e sem desvios, continuamente mais ao fundo do grande Mistério, da santidade absoluta, sabendo que santidade significa separar-se de tudo o que é vão, fútil, efêmero, temporário, enganoso e potencialmente perigoso para a alma.
Duc in altum! Ruma mar adentro, avançando sempre para as águas mais profundas (Lc 5,4.10), é o que nos ordena Nosso Senhor, assim como mandou a Pedro.
[1] DECARTES, René. Discurso do Método, 1637.
[2] Já que René Descartes inadvertidamente veio a se tornar um dos principais causadores de um grande mal ao pensamento filosófico, pela ruptura com a tradição e a inauguração de um novo modo de conceber a vida, o homem e a natureza, por meio do conhecimento racional, algo que redundaria no cientificismo que até hoje nos assola. A este autor que vos fala, porém, parece que ele tentava ser um bom católico e que ainda mereça algum respeito de nossa parte. Em anexo especial deste módulo, disponibilizaremos o resumo completo das suas três provas da existência de Deus.
[3] É uma experiência universalmente compartilhada pelos cristãos o ouvir a “voz de Deus” a lhes falar diretamente, seja em uma homilia, em uma pregação ou por meio de uma boa leitura, por exemplo; muitas vezes aquela mensagem esclarece alguma dúvida atroz, dá um direcionamento preciso ou até faz cessar uma grande angústia. Isso se dá, como é evidente, em parte porque muitos dos problemas que os cristãos enfrentam são comuns e compartilhados por muitos ou até por todos. Todavia, em grande medida essas comunicações se referem a problemas e situações realmente tão específicos que dificilmente seriam inexplicáveis pela mera coincidência.