Módulo 5: Bíblia 5 | Sobre a seleção dos Livros Canônicos

Antes de entrar nos esclarecimentos sobre a Inspiração quanto à Doutrina católica, imutável desde sempre e formalizada desde o Concílio Tridentino, cabe esclarecer completamente certos pontos centrais da heresia protestante que muitas vezes lançam dúvidas nas mentes de leigos católicos despreparados quanto ao assunto. Tratam-se das ideias completamente absurdas de que: 1) a Bíblia possuiria, por si própria, uma definitiva autoridade sobre a Igreja; 2) que por meio da sua leitura mesmo seria possível definir a sua Inspiração. Vejamos.

Provavelmente o estudante já saiba que, nos primeiros séculos da era cristã, havia uma grande quantidade de cartas atribuídas aos Apóstolos, relatos dos Evangelhos e textos religiosos circulando entre as novíssimas comunidades da Igreja, que eram lidos piedosamente e reverenciados como santos escritos, entre os quais estavam os livros que hoje compõem o Novo Testamento da Bíblia, mas também uma grande quantidade de outros textos que posteriormente viriam a ser considerados apócrifos. Até o século IV, não houve consenso quanto a quais livros deveriam compor a lista canonicamente reconhecida como Escritura Sagrada.

Considerando-se esta simples realidade, torna-se evidente a completa impossibilidade de ter existido, entre os Apóstolos e os primeiros cristãos, qualquer concepção doutrinária minimamente semelhante àquilo que viria a se chamar Sola Scriptura (somente a Escritura), surgida mais de um milênio e meio depois do Advento de Cristo. Ainda assim – e por mais incrível que possa parecer para o cristão bem formado –, persiste em nossos tempos a ideia de que seria possível reconhecer a lista dos Livros canônicos[1] simplesmente pela evidência da sua Inspiração. Segundo esse pensamento, de algum modo Deus/Espírito Santo revelaria de modo quase que instantâneo a sua “assinatura” a todo indivíduo que simplesmente se pusesse a folhear as verdadeiras Escrituras. Seria então a Igreja um fator completamente acidental, desnecessário para a escolha dos textos que compõem o Livro Sagrado dos cristãos.

A Inspiração divina de um livro, segundo tal absurdo, poderia ser verificada pelos piedosos efeitos que causa no fiel. Nada nos parece mais óbvio do que a completa falsidade desta noção, principalmente por ser inescapavelmente relativa: ora, não poderiam afirmar o mesmo (como de fato o fazem) os hindus, os muçulmanos, os espíritas e os seguidores das mais diversas e estrambóticas seitas? A hipótese de que a Bíblia se revelaria por si própria, além de totalmente subjetiva, evidentemente depende de conceitos e critérios ainda mais subjetivos. Como poderia qualquer indivíduo definir quais atributos caracterizam e diferenciam um Livro inspirado de um outro não inspirado? Quais seriam os critérios de avaliação destes mesmos atributos?

“Cada cabeça uma sentença”, lembra um adágio popular de origem antiquíssima e repleto de sabedoria. Ora, certa narrativa que alguém poderia jurar que tem origem divina seria facilmente considerada um disparate por outra pessoa. Eis o motivo pelo qual a ação da Igreja una, instituída por Cristo – e que por isso mesmo só pode ter um único Senhor, professar uma só Fé e conferir um único Batismo (cf. Ef 4,5) –, foi sempre sumamente necessária.

Assim como o Senhor Jesus Cristo prometeu que estaria com a sua Igreja (dita sempre no singular) até o fim dos tempos (Mt 28,20), nenhum autor sagrado afirmou ter escrito sob impulso do Espírito Santo, sendo a única exceção São João em seu Apocalipse. Todavia, mesmo que cada livro da Bíblia contivesse tal autenticação, isto não seria realmente prova alguma, pelo simples motivo de que os autores de livros apócrifos, especialmente os mal intencionados, poderiam acrescentar a mesma afirmativa às suas obras. Não existem – aos montes –, autores de livros espíritas que afirmam escrever inspirados por padres falecidos e mesmo por santos católicos, e que falsamente o atestam em suas obras infames? Não se afirma o Alcorão inspirado por Deus, como também o Livro de Mórmon, os livros de Mary Baker Eddy e Ellen G. White, além dos sutras provenientes de muitas seitas orientais?

Um último caso a ser analisado é o daqueles que afirmam que a Inspiração divina de um livro poderia ser verificada pela “inspiração” que causa no crente: “É inspirado porque inspira”, dizem. Outro grande engano, e mais ainda, uma tolice digna de pena. Se não, notemos como existem diversos escritos religiosos antigos, inclusive entre textos apócrifos e até – somos forçados a reconhecê-lo –, escrituras não cristãs, que poderíamos com justiça considerar mais “inspiradores”, por serem mais emotivos, carregados de forte simbolismo e apelo às sensibilidades humanas, do que muitos textos do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada. Tomemos como exemplo o Livro de Números: seria possível, usando apenas este critério, afirmar que o Livro de Números é divinamente Inspirado? Por certo que não.

É de fato coisa muito simples demonstrar, pois, que não é possível definir a divina Inspiração de um livro mediante a mera análise particular dele mesmo, como também não se poderia defini-la se o próprio livro se declarasse assim inspirado. De fato, a fixação do cânon não poderia estar sujeita às opiniões pessoais, nem fundamentadas em quaisquer métodos de verificação que por sua própria natureza serão sempre subjetivos e duvidosos.

Por fim, resta salientar que também não seria possível identificar a totalidade dos conteúdos bíblicos exclusivamente por meio do estudo dos livros que desde sempre e consensualmente foram reconhecidos como canônicos. Em outras palavras, também não se pode, por meio dos livros protocanônicos, conhecer a lista dos deuterocanônicos[2] que compõem tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Como exemplo, em Lucas (24,27.47) e João (10,34) aparecem as expressões “Moisés e os Profetas”; “a Lei e os Profetas” e “Lei, Profetas e Salmos”, sempre relacionadas ao conceito de Escritura Sagrada. Mas a expressão “Profetas” abrangeria quais livros? Datados da mesma época dos Profetas, existe uma grande quantidade de outros livros cuja autoria é atribuída aos antigos Profetas do AT e que, no entanto, não são canônicos. Do mesmo modo, existem outros cuja autoria profética ainda é duvidosa e mesmo assim são considerados canônicos por todos os cristãos.

O mesmo se aplica aos Salmos: existe, por exemplo, um escrito denominado Salmo 151, que é considerado canônico apenas pela Igreja Ortodoxa. E o que dizer de livros como Provérbios, Eclesiastes, Ester, Rute, e 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e Josué? Seriam parte de qual grupo? Lei, Profetas ou Salmos? Ou pertenceriam a um outro grupo cuja menção não se encontra em qualquer livro protocanônico?
Um fato ainda mais impactante, tanto quanto pouco conhecido, é que a Bíblia faz referência a pelo menos 31 livros que hoje são considerados apócrifos pelos cristãos (HAMMER, 2006)[3]. O NT menciona, por exemplo, o livro “Ascensão de Moisés” (cf. Jd 1,9) e o “Livro de Henoc” (cf. Jd 1,14). Foram perdidas ainda a Epístola de São Paulo aos Laodicenses (Cl 4,15-16) e sua Prévia aos Coríntios (1Cor 5,9-10).

Por essas inescapáveis razões e pelo fato de a Bíblia mesma não definir o seu conjunto de Livros sagrados, o discernimento do Cânon bíblico necessariamente depende de algo que é exterior aos próprios Livros: é algo totalmente inevitável. Não, a Bíblia não se forma e nem se autoriza por si mesma, e nem poderia fazê-lo. A sua legitimidade depende de uma autoridade externa e anterior que lhe define e que lhe é superior em termos de autoridade. Sempre foi assim na tradição judaica e também na Tradição cristã. Podemos tomar como exemplo o Pentateuco, que sempre foi considerado canônico pelos judeus, mas não por uma autoridade própria do texto em si, e sim porque tinha origem na tradição rabínica e em Moisés (cf. Ex 18,13-14; Mt 19,7-8). Da mesma maneira se dá com os escritos dos Profetas, livros cuja autoridade, igualmente, nunca partiu os livros mesmo, nem daquilo que afirmam ou deixam de afirmar, mas no anúncio anterior dos mesmos Profetas (como na Tradição cristã), ou porque sua autoria é atribuída a homens legitimamente autorizados por Deus (Magistério).

Está claro que a atribuição de Autoridade divina a um livro – ou seja, a definição da sua canonicidade –, sempre dependeu da autoridade de algo que é exterior e anterior ao Livro em si, isto é, a Tradição que lhe deu origem e o Magistério divinamente estabelecido que o autentica, este que é reconhecido como legítimo guardião e o difusor das verdades que o Livro atesta.

Mais: essa antiga e divina relação não se aplica somente ao cânon bíblico. Observe-se que alguns dos Livros da Bíblia não trazem o nome do seu autor (o Pentateuco e os Evangelhos, por exemplo). A atribuição de sua autoria dependeu, é claro, da Tradição e do Magistério da Igreja divinamente instituída.

Agora já sabemos como e porque a formação e a canonização da Bíblia cristã que conhecemos hoje dependeu diretamente da autoridade da sagrada Tradição e do Magistério da Igreja. Em tempo oportuno, veremos de que modos Deus se utilizou destes dois instrumentos (Tradição e Magistério) para nos comunicar o que hoje temos como nosso Livro sagrado. Nossos estudos serão, portanto, completíssimos. Nosso Senhor e Salvador o ilumine e guarde até lá e para a vida eterna. Amém.


Notas:

[1] Justamente aqueles que, segundo a Igreja divinamente autorizada, compõem a Biblioteca sagrada dos cristãos, por terem sido escritos sob Inspiração divina e integrarem o conjunto de verdades que formam a Revelação.

[2] Protocanônicos (de proto, do grego πρώτο, que significa ‘primeiro’) são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida pela Igreja em primeiro lugar; deuterocanônicos (deutero, do grego Δευτεριο, significa ‘posterior’ ou ‘segundo’). Deuterocanônicos, portanto, são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida posteriormente. Existem livros proto e deuterocanônicos tanto no AT quanto no NT. A lista dos livros deuterocanônicos do AT é: Tobias; Judite; Sabedoria; Eclesiástico; Baruc; 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos do Ester (10,4 a 16,24) e Daniel (3,24-90; 13; 14). A lista dos livros deuterocanônicos do NT é: 2Pedro; 2João; 3João; Tiago; Judas; Hebreus e Apocalipse.

[3] A lista dos Livros perdidos encontra-se disponível em:
www.ofielcatolico.com.br/2001/03/livros-citados-pela-biblia-atualmente.html

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A BÍBLIA CONFIRMA A SANTA IGREJA

A BÍBLIA COMO “ÚNICA REGRA” É HERESIA:
 
“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular.”
(2 Pedro 1,20)
 
“Escrevo (a Bíblia) para que saibas como comportar-te na Igreja, que é a Casa do Deus Vivo, a coluna e o fundamento da Verdade.”
(1Timóteo 3,15)
 
“…Vós examinais as Escrituras, julgando ter nelas a vida eterna. Pois são elas que testemunham de Mim, e vós não quereis vir a Mim, para terdes a vida.”
(João 5,39-40)
 

“Porque já é manifesto que vós (a Igreja) sois a Carta de Cristo, ministrada por nós (Apóstolos), e escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração (…); o qual nos fez também capazes de ser ministros de um Novo Testamento, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.”
(2Cor 3,3.6)

A IGREJA SEMPRE OBSERVOU A TRADIÇÃO APOSTÓLICA
 

“Em Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apartai-vos de todo irmão que não anda segundo a Tradição que de nós recebeu.”
(2 Tessalonicenses 3,6)

“Então, irmãos, estai firmes e guardai a Tradição que vos foi ensinada, seja por palavra (Tradição), seja por epístola nossa (Bíblia). ”
(2 Tessalonicenses 2, 15)
 
JESUS CRISTO INSTITUIU O PAPADO
 

“Tu és Pedra, e sobre essa Pedra edifico a minha Igreja (…). E eu te darei as Chaves do Reino dos Céus; e tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos Céus.”
(Mateus 16, 18)

“(Pedro,) apascenta o meu rebanho.”
(João 21,15-17)

“Irmãos, sabeis que há muito tempo Deus me escolheu dentre vós (Apóstolos), para que da minha boca os pagãos ouvissem a Palavra do Evangelho.”
– S. Pedro Apóstolo, primeiro Papa da Igreja de Cristo (Atos dos Apóstolos 15, 7)
 
“Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, confirma os teus irmãos.”
– Jesus Cristo a S. Pedro (Lucas 22, 31-32)
 
A IGREJA SEMPRE VENEROU MARIA COMO MÃE DE DEUS
 

“Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe do Senhor? (Mãe do Senhor = Mãe de Deus, pois Jesus é Deus)”
O Espírito Santo pela boca de Isabel à Virgem Maria (Lucas 1,43)

“De hoje em diante, todas as gerações me proclamarão Bem-aventurada!”
– Santíssima Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor
(Lucas 1, 48)

NÃO HÁ VÁRIAS IGREJAS E SIM UMA SÓ
 

“Há um só Senhor, uma só Fé, um só Batismo”
(Efésios 4,5)

“Ainda que nós ou um anjo baixado do Céu vos anuncie um evangelho diferente do nosso (Apóstolos), que seja anátema.”
(Gálatas 1, 8)

NÃO HÁ SALVAÇÃO SEM A EUCARISTIA
 

“Em Verdade vos digo: se não comerdes da Carne e do Sangue do Filho do homem, não tereis a Vida em vós mesmos.”
(João 6, 56)

“Minha Carne é verdadeiramente comida, e o meu Sangue é verdadeiramente bebida.”
(João 6, 55)
 
“O Cálice que tomamos não é a Comunhão com o Sangue de Cristo? O Pão que partimos não é a Comunhão com o Corpo de Cristo?”
(1ª aos Coríntios 10, 16)
 
A IGREJA SEMPRE CREU NA INTECESSÃO DOS SANTOS, QUE ROGAM POR NÓS NO CÉU
 

“E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos, da mão do anjo, diante de Deus.”
(Apocalipse 8, 4)

“Aqui (no Céu) está a paciência dos santos; aqui estão os que guardam os Mandamentos de Deus e a Fé em Jesus.”
(Apocalipse 14, 12)
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