Módulo 6: História da Igreja 2 | A literatura apocalíptica

Um gênero literário muito difundido entre o segundo século a.C. e o primeiro d.C. explorava, à exaustão, a imaginação popular em torno dessa grande expectativa que pairava no ar: o gênero apocalíptico, cujo ponto de partida podemos encontrar, em seus traços essenciais, no Livro bíblico de Daniel , e cuja consumação está no Apocalipse de São João.

Esse tipo de literatura era permeada de uma poesia peculiar, eivada de simbologia, na qual o sonho nacional inflamado se misturava com as especulações dos estudiosos da época sobre esses grandes mistérios. A esperança messiânica concreta e temporal servia de base para as doutrinas escatológicas que pretendiam revelar detalhes sobre os últimos fins do homem e o sentido último da existência.
Esses livros a Igreja excluiu do cânon do Antigo Testamento, porém alguns deles foram bastante venerados na mesma Igreja desde o primeiro século e até meados do século IV, como é o caso do Livro de Enoque (ou Enoch), que está citado na Epístola de São Judas (1,14)[1] e que é considerado canônico pela igreja etíope. Esses livros apócrifos são valiosos para os estudos históricos da Bíblia, ao mesmo tempo em que alguns deles abrigam conteúdos estranhos, os quais terminaram por desaguar no misticismo judaico da Cabalá e do Zohar.

O Livro de Enoque, o Livro dos Jubileus, o Testamento dos Doze Patriarcas, a Ascensão de Moisés, os Salmos de Salomão e o Apocalipse de Esdras, entre outros, são escritos apócrifos que exerceram profunda influência sobre o inconsciente judaico da época. Por essa razão, a título de conhecimento histórico, é interessante que o estudante da sagrada Teologia os conheça.

O que aqui mais nos interessa quanto a tais obras é o fato de demonstrarem com qual intensidade a vinda do Messias era esperada no Israel de então, e como se pensava que tal evento se daria como uma revelação fulminante, que provocaria uma comoção súbita e universal. Vai citar o autor da obra que inicialmente nos serve de base nesta disciplina:

Cantava-se: “Felizes aqueles que viverem nos dias do Messias, porque verão a felicidade de Israel e todas as tribos reunidas”. Mas também se repetia de boca em boca que a vinda do Ungido seria marcada por sinais atrozes: “A madeira sangrará, as pedras falarão e em muitos lugares do mundo se abrirá o abismo”. A alegria da expectativa estava, pois, permeada de pavor.[2]

Havia, pois, todo esse complexo conjunto psicológico, aplicado à fé simples do povo mais humilde, portador de uma piedade viva e também de um forte desejo de vingança contra o invasor romano, aliado a um sentimento de mysterium tremendum et fascinans[3], com um terror inevitável e a indisfarçável atração popular pelo mágico: compreender o efeito de todo esse amálgama de emoções seria necessário para se abarcar o que poderia significar a espera do Messias em uma alma israelita dos anos 30 d.C., bem como os sentimentos de espanto e angústia que a dominariam quando lhe afirmassem que Ele já estava presente, caminhando bem perto.

“Fazei soar em Sião a trombeta das festas! Gritai em Jerusalém o grito do mensageiro da alegria! Dizei que YHWH, em sua misericórdia, visitou Israel! De pé, Jerusalém! Ao alto os corações! Olha teus filhos do nascente e do poente reunidos pelo Senhor! A sua alegria em Deus vem também do norte, e o seu agrupamento das ilhas mais longínquas. Os montes nivelaram-se, as colinas esfumaram-se e as florestas projetaram sua sombra sobre os caminhos por onde eles haviam de passar. Para que estivessem preparados para a festa do Senhor, os bosques deram-lhes toda a espécie de madeiras aromáticas . Jerusalém , cobre-te com as tuas vestes de glória, limpa a tua túnica de santificação. Porque Deus prometeu a felicidade ao teu povo, no século presente e na sequência dos séculos. Que venha, que se realize a Promessa de Deus feita outrora a nossos pais e que, pelo seu santo Nome, Jerusalém seja para sempre exaltada!“ (Salmos de Salomão 11)[4]

Tal era a bela oração dos judeus piedosos. E os membros da comunidade dos “irmãos”, os “seguidores do Caminho” que ainda não eram conhecidos pelo nome inicialmente pejorativo de “cristãos”[5], respondiam de maneira admirável a esses anseios tão intimamente enraizados, testemunhando que todas essas coisas já se tinham realizado. Um deles, Simão, chamado Pedra (no português ‘Pedro’, para que o título-nome tivesse gênero gramatical masculino), tratado como seu líder, falando um dia perante um numeroso auditório, discursou com as seguintes palavras, duras de se ouvir:

“Israelitas, ouvi estas palavras: Jesus de Naza­ré, homem de quem Deus tem dado testemunho diante de vós com milagres, prodígios e sinais que Deus por Ele realizou no meio de vós, como o sabeis, depois de ter sido entregue, segundo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de ímpios. Mas Deus o ressuscitou, rompendo os gri­lhões da morte, porque não era possível que ela o retivesse em seu poder. Pois dele diz Davi: ‘Eu via sempre o Senhor perto de mim, pois ele está à minha direita, para que eu não seja abalado. Alegrou-se por isso o meu coração e a minha língua exultou. Sim, também a minha carne repousará na esperança, pois não deixarás a minha alma na região dos mortos, nem permitirás que o teu Santo conheça a corrupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, e me encherás de alegria com a visão de tua Face’ (Sl 15,8-11).
Irmãos, seja permitido dizer-vos com franqueza: do patriar­ca Davi dizemos que morreu e foi sepultado, e o seu sepulcro está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era profeta e sabia que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes seria colocado no seu trono. É, portanto, a Ressurreição de Cristo que ele previu e anunciou por estas palavras: ‘Ele não foi abandonado na região dos mortos, e sua carne não conheceu a corrupção’. A este Jesus, Deus o ressuscitou: disso todos nós somos testemu­nhas. Exaltado pela Direita de Deus, havendo recebido do Pai o Espírito Santo prometido, derramou-o como vós vedes e ouvis. Pois Davi pessoal­mente não subiu ao Céu, todavia diz: ‘O Senhor disse a meu Senhor: Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés’ (Sl 109,1). Que toda a Casa de Israel saiba, portanto, com a maior certeza, que este Jesus, que vós crucificastes, Deus o constituiu Senhor e Cristo.”
(At 2,22-23. 32. 36).

Donde tiravam estes homens a convicção que proclamavam tão alto, e com tão admiráveis e convictas palavras?


Notas:

[1] Embora não se possa dar como 100% certo que São Judas de fato tenha citando o Livro de Enoque (o Apóstolo poderia estar mencionando um acontecimento que é encontrado também no livro não inspirado, ou uma antiga tradição oral citada em ambas as obras), é praticamente um consenso entre teólogos e os mais respeitados biblistas que a Epístola de S. Judas realmente cita explicitamente o capítulo 1 do Livro de Enoque (1,9) segundo a sua versão grega. Para maiores aprofundamentos sobre a questão, consultar aqui o documento (PDF) disponibilizado em nossa pasta de materiais extras.

[2] DANIEL-ROPS (1998), p.12.

[3] Expressão introduzida pelo teólogo e erudito alemão Rudolf Otto em sua referencial obra Das Heilige, de 1917, como conceito básico da Fenomenologia da Religião; é parte de sua descrição sobre como o numinoso pode ser vivenciado pelo sujeito humano. Numinoso é aquilo que sugere a presença do Poder divino diante da pessoa humana. Experiência numinosa é a sensação de se estar na presença de algo maior, uma realidade radicalmente diferente de tudo quanto conhecemos pela experiência ordinária. Dos testemunhos dos grandes profetas, místicos e videntes, temos que tiveram experiências extremamente impactantes, as quais mudaram definitivamente suas vidas, referindo-se muitas vezes a uma sensação ao mesmo tempo “terrível”, no sentido de aterradora, mas também irresistivelmente fascinante. O Transcendente aparece como mysterium tremendum et fascinans, isto é, um mistério diante do qual a humanidade treme e, ao mesmo tempo, queda-se fascinada; repelida pelo temor e atraída pela revelação/inspiração que vem daquilo que é totalmente santo, isto é, “inteiramente outro” (das ganz Andere [pron.: dás gânz ânderre]) e que é, portanto, incapaz de ser expresso perfeitamente por meio da linguagem humana mediante a concatenação dos pensamentos racionais. Não raro, os santos Anjos, assim como Nossa Senhora, em suas aparições, dizem em primeiro lugar aos agraciados que os veem: “Não tenhas medo”.
* Otto foi um dos pensadores mais influentes sobre religião na primeira metade do século XX. Ele é mais conhecido por sua análise da experiência que, em sua opinião, é subjacente a toda religião.

[4] Apud DANIEL-ROPS (1998), p.14.

[5] Os discípulos de Jesus o Cristo foram chamados cristãos pela primeira vez na cidade de Antioquia, conforme o relato de São Lucas Evangelista (cf. At 11,1-30). O termo, muito provavelmente, foi usado pela primeira vez com sentido pejorativo, uma forma de desdém ou escárnio. Assim é que ganha sentido o que disse o primeiro Papa:
“Caríssimos, não vos perturbeis no fogo da provação (…). Se fordes ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois vós, porque o Espírito de glória, o Espírito de Deus repousa sobre vós. Que ninguém de vós sofra como homicida, ou ladrão, ou difamador, ou cobiçador do alheio. Se, porém, padecer como cristão, não se envergonhe; pelo contrário, glorifique a Deus por ter esse nome” (1Pd 4,12-16). Um termo usado para desdenhar tornou-se o distintivo de honra para a Igreja primitiva. Eusébio (séc. IV a.C.), ao falar de certo mártir cuja alcunha era “Sanctus”, relata que, aos seus torturadores, quando o provocavam, ele simplesmente respondia: “Eu sou um cristão!”.

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A BÍBLIA CONFIRMA A SANTA IGREJA

A BÍBLIA COMO “ÚNICA REGRA” É HERESIA:
 
“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular.”
(2 Pedro 1,20)
 
“Escrevo (a Bíblia) para que saibas como comportar-te na Igreja, que é a Casa do Deus Vivo, a coluna e o fundamento da Verdade.”
(1Timóteo 3,15)
 
“…Vós examinais as Escrituras, julgando ter nelas a vida eterna. Pois são elas que testemunham de Mim, e vós não quereis vir a Mim, para terdes a vida.”
(João 5,39-40)
 

“Porque já é manifesto que vós (a Igreja) sois a Carta de Cristo, ministrada por nós (Apóstolos), e escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração (…); o qual nos fez também capazes de ser ministros de um Novo Testamento, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.”
(2Cor 3,3.6)

A IGREJA SEMPRE OBSERVOU A TRADIÇÃO APOSTÓLICA
 

“Em Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apartai-vos de todo irmão que não anda segundo a Tradição que de nós recebeu.”
(2 Tessalonicenses 3,6)

“Então, irmãos, estai firmes e guardai a Tradição que vos foi ensinada, seja por palavra (Tradição), seja por epístola nossa (Bíblia). ”
(2 Tessalonicenses 2, 15)
 
JESUS CRISTO INSTITUIU O PAPADO
 

“Tu és Pedra, e sobre essa Pedra edifico a minha Igreja (…). E eu te darei as Chaves do Reino dos Céus; e tudo o que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos Céus.”
(Mateus 16, 18)

“(Pedro,) apascenta o meu rebanho.”
(João 21,15-17)

“Irmãos, sabeis que há muito tempo Deus me escolheu dentre vós (Apóstolos), para que da minha boca os pagãos ouvissem a Palavra do Evangelho.”
– S. Pedro Apóstolo, primeiro Papa da Igreja de Cristo (Atos dos Apóstolos 15, 7)
 
“Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, confirma os teus irmãos.”
– Jesus Cristo a S. Pedro (Lucas 22, 31-32)
 
A IGREJA SEMPRE VENEROU MARIA COMO MÃE DE DEUS
 

“Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe do Senhor? (Mãe do Senhor = Mãe de Deus, pois Jesus é Deus)”
O Espírito Santo pela boca de Isabel à Virgem Maria (Lucas 1,43)

“De hoje em diante, todas as gerações me proclamarão Bem-aventurada!”
– Santíssima Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor
(Lucas 1, 48)

NÃO HÁ VÁRIAS IGREJAS E SIM UMA SÓ
 

“Há um só Senhor, uma só Fé, um só Batismo”
(Efésios 4,5)

“Ainda que nós ou um anjo baixado do Céu vos anuncie um evangelho diferente do nosso (Apóstolos), que seja anátema.”
(Gálatas 1, 8)

NÃO HÁ SALVAÇÃO SEM A EUCARISTIA
 

“Em Verdade vos digo: se não comerdes da Carne e do Sangue do Filho do homem, não tereis a Vida em vós mesmos.”
(João 6, 56)

“Minha Carne é verdadeiramente comida, e o meu Sangue é verdadeiramente bebida.”
(João 6, 55)
 
“O Cálice que tomamos não é a Comunhão com o Sangue de Cristo? O Pão que partimos não é a Comunhão com o Corpo de Cristo?”
(1ª aos Coríntios 10, 16)
 
A IGREJA SEMPRE CREU NA INTECESSÃO DOS SANTOS, QUE ROGAM POR NÓS NO CÉU
 

“E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos, da mão do anjo, diante de Deus.”
(Apocalipse 8, 4)

“Aqui (no Céu) está a paciência dos santos; aqui estão os que guardam os Mandamentos de Deus e a Fé em Jesus.”
(Apocalipse 14, 12)
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