Foi tudo em vão?
A PERGUNTA QUE DÁ título a este artigo é especialmente pertinente em nossos tempos. Vivemos numa sociedade em que a tolerância “politicamente correta” para com as diversas religiões não só está “na moda” como também constitui um verdadeiro compromisso para muita gente e muitas organizações importantes. Nem todos são mal intencionados. Conheço pessoalmente homens e mulheres de bem que acreditam e pregam a igualdade entre todas as crenças, principalmente em nome da paz. E em nome da “tolerância” e da “fraternidade humana”, põem “num mesmo saco” a Religião, as diversas religiões e as seitas de todo e qualquer tipo.
“Pluralismo”, “diversidade”, “aceitação” e “tolerância” são palavras muito populares para a cultura atual. Todas as religiões teriam o mesmo valor, e nenhuma delas poderia ser considerada verdadeira, ao menos não se isso implicar dizer que alguma outra seja falsa. Quantas vezes cada um de nós já não terá ouvido dizer que “o importante é crer em alguma coisa”, ou, pior, que “o importante é ser feliz”? O maior problema é que – flagrante contradição –, nessa mesma sociedade supostamente muito tolerante, quem ousa dizer algo diferente não é tolerado… Ao contrário, essa pessoa é “cancelada”, impiedosamente perseguida, ridicularizada e, se não tomar cuidado, pode perder o emprego ou até acabar presa.
Ainda mais grave, mesmo dentro de ambientes religiosos, que teriam por obrigação defender a verdade perante o mundo – sem a preocupação de atender a interesses particulares, sem “fazer média” com ninguém –, os falsos conceitos de tolerância têm adquirido enorme espaço, a ponto de determinados ensinamentos catequéticos terem se tornado, de certo modo, proibidos, porque são agora considerados “politicamente incorretos”. Temas como o Inferno, a necessidade da Confissão, a inerrância da Igreja, o pecado mortal que é usar a (assassina) pílula anticoncepcional – apenas para citar alguns poucos –, estão sendo evitados.
Já não se diz a verdade simplesmente, e quando se é obrigado a dizê-la, procura-se então suavizá-la, disfarçá-la, “enfeitá-la” para que não pareça tão feia. Ninguém quer ferir a frágil sensibilidade do homem moderno…
É o caso, outro exemplo, quando se trata da Justiça de Deus. Muitos padres e catequistas já não querem mais falar em Justiça divina: dizem apenas que Deus é amor, que é misericórdia infinita, dando a entender que vai nos perdoar e levar para o Céu de qualquer jeito, independentemente do que sejamos ou façamos, como se de um dia para o outro a Doutrina cristã tivesse mudado assim, radicalmente.
Nesta nossa época, em que domina a pressão globalista a favor do relativismo e do sincretismo religioso, “ter uma Fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo” (Bento XVI, Missa Pro Eligendo Romano Pontifice, 19/abril/2005).
O que se busca é uma espécie de religião única, globalista, que unifique todos os credos. Assim, cria-se a equivocada sensação de que qualquer proposta religiosa é válida para a salvação, até as mais absurdas, as mais contrárias aos valores que construíram a nossa civilização. A tática consiste na elaboração de um sistema neopagão para o qual não exista nenhuma autoridade planetária que não seja política. Obviamente, a Doutrina católica, sobretudo no que afirma sobre o papado e a necessidade da Igreja para a salvação (artigos irrenunciáveis da fé cristã), tornam-se pedras de tropeço para esse objetivo.
A Fé católica, porém, não mudou, como de fato não pode mudar: continuamos crendo que o Verbo de Deus se encarnou uma única vez; que somente n’Ele se encontra a plenitude da Revelação e os meios necessários para um autêntico encontro com Deus. É através de Jesus Cristo e de sua continuação histórica na Terra, que é a Igreja Católica, que o homem pode ser salvo. Sabemos que não há outro Nome debaixo do céu pelo qual a humanidade possa alcançar a salvação (At 4,12).
Portanto, para nós, católicos, já existe a Religião global e universal. Esta Religião é cristã e católica – sendo que a palavra quer dizer exatamente isso, universal. A Católica é a Igreja para a qual todos os seres humanos foram criados, e Jesus veio a este mundo para que todos, aqui na Terra ou derradeiramente no Céu, pertençam a ela. Se alguém duvida que esta é a doutrina católica ou imagina que isso mudou depois do Concílio Vaticano II, basta consultar os documentos oficiais da Igreja, como a Declaração Dominus Iesus (2000) e/ou a notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o livro “Para uma teologia cristã do pluralismo religioso”, do Padre Jacques Dupuis. Este documento (2001) elencou 5 pontos básicos e inegociáveis da doutrina católica, principalmente na temática da salvação, a saber:
Ponto 1 – Jesus Cristo é o único e universal Mediador da salvação de toda a humanidade. A notificação rechaça a tese de uma certa “ação salvífica do Verbo” alheia à Pessoa de Cristo, ou seja, “independentemente da humanidade do Verbo encarnado”. Com isso, a Congregação reafirma a supremacia do cristianismo sobre todas as outras religiões. Somente na fé cristã Deus se encarnou, sofreu e morreu na cruz pela humanidade. A ideia segundo a qual Deus teria, de algum modo, se encarnado em todas as religiões, e que Jesus seria portanto apenas uma dessas muitas encarnações ou avatares é, para o cristianismo, simplesmente absurda, sem qualquer respaldo teológico ou bíblico.
Ponto 2 – A Revelação em Jesus Cristo é una e plena. É um dever de todo cristão crer firmemente na Mediação do Cristo, no cumprimento e na plenitude da Revelação nEle e através dEle. É “contrário à fé da Igreja” afirmá-la “limitada, incompleta e imperfeita”. Não há uma única verdade de fé necessária à salvação que não esteja contida na Sã Doutrina cristã e, embora possam existir “elementos de verdade” nas outras religiões, todas elas, de uma maneira ou de outra, derivam “em última análise da Mediação frontal de Jesus Cristo”. Nenhuma outra doutrina ou religião “completa” o cristianismo.
Ponto 3 – O Espírito Santo é plenamente capaz de agir “de maneira salvífica tanto nos cristãos como nos não-cristãos”, mas o faz justamente atraindo as almas para o “Aprisco de Cristo”. É “contrário à Fé católica pensar que a ação salvífica do Espírito Santo possa estender-se para além da única e universal economia salvífica do Verbo encarnado”: isso quer dizer que toda ação do Espírito Santo tem por meio a Igreja – o Sacramento universal da salvação. A ação do Espírito Santo fora da Igreja existe, mas tem sempre a intenção de trazer todas as pessoas à Igreja de Jesus Cristo, que confere os Sacramentos para a santificação e salvação.
Ponto 4 – Recorda a vocação universal do homem. Toda a humanidade foi orientada para Jesus: existe uma vocação específica dos seres humanos de todos os tempos, de todos os lugares da História, para a Igreja de Cristo. Com isso, a Congregação afirmou que “também os seguidores das outras religiões estão orientados para a Igreja e todos são chamados a fazer parte dela”, não sendo possível “considerar as várias religiões do mundo como vias complementares à Igreja em ordem à salvação”.
Ponto 5 – A Congregação para a Doutrina da Fé responde à pergunta central: “Podemos afirmar que todas as religiões são caminhos de salvação?”. O esclarecimento é categórico ao definir que “não tem qualquer fundamento na Teologia católica considerar as (diversas) religiões, enquanto tais, caminhos de salvação, até porque nelas existem lacunas, insuficiências e erros que dizem respeito a verdades fundamentais sobre Deus, o homem e o mundo”. As verdades contidas nas muitas religiões não são, em si mesmas, caminhos de salvação para as almas.
Fonte:
DECLARAÇÃO “DOMINUS IESUS” SOBRE A UNICIDADE E A UNIVERSALIDADE SALVÍFICA DE JESUS CRISTO E DA IGREJA, Congregação para a Doutrina da FéNOTIFICAÇÃO A PROPÓSITO DO LIVRO DE JACQUES DUPUIS “PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ DO PLURALISMO RELIGIOSO” (1997), Congregação para a Doutrina da Fé, disp. em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20010124_dupuis_po.html
Acesso 23/8/2023
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